Comecei...

24-03-2014 14:33
"Comecei a amar-te no dia em que te abandonei.
 
Foram as palavras dele quando, dez anos depois, a encontrou por mero acaso no café.
 
Ela sorriu, disse-lhe “olá, amo-te” mas os lábios só disseram “olá, está tudo bem?”.
 
Ficaram horas a conversar, até que ele, nestas coisas era sempre ele a perder a vergonha por mais vergonha que tivesse naquilo que tinha feito (como é que fui deixar-te? como fui tão imbecil ao ponto de não perceber que estava em ti tudo o que queria?), lhe disse com toda a naturalidade do mundo que queria levá-la para a cama.
 
Ela primeiro pensou em esbofeteá-lo e depois amá-lo a tarde toda e a noite toda, de seguida pensou em fugir dali e depois amá-lo a tarde toda e a noite toda, e finalmente resolveu não dizer nada e, lentamente, a esconder as lágrimas por dentro dos olhos, abandonou-o da mesma maneira que ele a abandonara uma década antes.
 
Não era uma vingança nem sequer um castigo – apenas percebeu que estava tão perdida dentro do que sentia que tinha de ir para longe dali para ir para dentro de si.
 
Pensou que provavelmente foi isso o que lhe aconteceu naquele dia longínquo em que a deixara, sozinha e esparramada de dor, no chão, para nunca mais voltar.
 
De tudo o que amo és tu o que mais me apaixona.
 
Foram as palavras dela, poucos minutos depois, quando ele, teimoso, a seguiu até ao fundo da rua em hora de ponta.
 
Estavam frente a frente, toda a gente a passar sem perceber que ali se decidia o futuro do mundo.
 
Ele disse: “casei-me com outra para te poder amar em paz”.
 
Ela disse: “casei-me com outro para que houvesse um ruído que te calasse em mim”.
 
Na verdade nem um nem outro disseram nada disso porque nem um nem outro eram poetas.
 
Mas o que as palavras de um (“amo-te como um louco”) e as palavras de outro (“amo-te como uma louca”) disseram foi isso mesmo.
 
A rua parou, então, diante do abraço deles."
 
(Pedro Chagas Freitas)