A armadura...

01-01-2014 22:09
"Desenganos, traições, combates, sofrimentos, 
Numa vida já longa acumulados, vão 
— Como sobre um paul contínuos sedimentos, 
Pouco a pouco envolvendo em cinza o coração. 
 
E a cinza com o tempo atinge uma espessura 
Que nem os mais cruéis desesperos abalam; 
É como tenebrosa, impávida armadura 
Ou couraça de bronze em que os golpes resvalam. 
 
Impermeável da Inveja à peçonhenta bava, 
Nela a Calúnia embota os seus dentes ervados; 
Não há braço que possa amolgá-la, nem clava 
Que nesse duro arnês se não faça em bocados. 
 
E no entanto, através dessas rijas camadas, 
Ou rompendo por entre as juntas da armadura, 
Escorrem muita vez gotas ensanguentadas 
Que o coração verteu dalguma chaga obscura..."
 
(António Feijó)